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LIVROS ESPETACULARES

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1 - CÂNDIDO, OU O OTIMISMO
Candide, ou l’Optimisme







ESTE LIVRO, ESCRITO EM 1759, PELO GRANDE FILÓSOFO E LIVRE-PENSADOR VOLTAIRE (1694-1778), CONTÉM 26 CAPÍTULOS. AQUI, ESTÃO APRESENTADOS OS CINCO PRIMEIROS, PARA QUE VOCÊS POSSAM DEGUSTAR A SOFRIDA HISTÓRIA DE CÂNDIDO, DE CUNEGUNDES, DE PANGLOSS, DE CACAMBO E DE OUTROS. ESTE LIVRO FOI UMA RESPOSTA IRÔNICA AO PENSAMENTO DE LEIBNITZ (REPRESENTADO PELA FUGURA DE PANGLOSS), QUE AFIRMAVA SER ESTE NOSSO MUNDO O MELHOR DOS MUNDOS POSSÍVEIS!



JOSÉ LUÍS QUEIMADO



CAPÍTULO I
De como foi Cândido criado em um lindo castelo, e como dali o escorraçaram


   Havia em Vestfália, no castelo do senhor barão de Thunder-ten-tronckh, um jovem a quem a natureza dotara da índole mais suave. Sua fisionomia lhe anunciava a alma. Era reto de juízo e simples de espírito, razão pela qual, creio eu, o chamavam de Cândido. Suspeitavam os velhos criados que fosse filho da irmã do senhor barão e de um bom e honrado gentil-homem da vizinhança, com quem esta jamais consentira em casar-se, porque ele só pudera alegar setenta e uma gerações, havendo as injúrias do tempo destruído o resto da sua arvore genealógica.
   Era o senhor barão um dos mais poderosos senhores de Vestfália. Sua sala de honra ostentava, até, uma tapeçaria. Todos os seus cães, reunidos, formavam, em caso de precisão, uma boa matilha; o vigário da aldeia era o seu esmoler-mor. Tratavam-no todos por Monsenhor e riam quando ele contava histórias.
   A senhora baronesa, que pesava cerca de trezentas e cinqüenta libras, granjeava com isso enorme consideração, e fazia as honras da casa com uma dignidade que a tornava ainda mais respeitável. Sua filha Cunegundes, que contava dezessete anos, era corada, fresca, rechonchuda, apetitosa. O filho do barão parecia em tudo digno do pai. o preceptor Pangloss era o oráculo da casa, e o pequeno Cândido escutava as suas lições com toda a boa fé da sua idade e do seu caráter.
   Pangloss ensinava metafísico - teólogo - cosmolonigologia. Provava admiravelmente que não há efeito sem causa e que, neste que é o melhor possível dos mundos, o castelo do senhor barão era o mais belo possível dos castelos e a senhora a melhor das baronesas possíveis.
Está demonstrado, dizia ele, que as coisas não podem ser de outra maneira: pois, como tudo foi feito para um fim, tudo está necessariamente destinado ao melhor fim. Queiram notar que os narizes foram feitos para usar óculos, e por isso nós temos óculos. As pernas foram visivelmente instituídas para as calças, e por isso temos calças. As pedras foram feitas para serem talhadas e edificar castelos, e por isso
   Monsenhor tem um lindo castelo; o mais considerável barão da província deve ser o mais bem alojado; e, como os porcos foram feitos para serem comidos, nós comemos porco o ano inteiro: por conseguinte, aqueles que asseveravam que tudo está bem disseram uma tolice; deviam era dizer que tudo está o melhor possível.
   Cândido ouvia com toda a atenção e acreditava inocentemente; pois achava a senhorita Cunegundes extremamente formosa, embora jamais se atrevesse a lho dizer. Concluía que, depois da ventura de ter nascido barão de Thunder-ten-tronckh, o segundo grau de felicidade consistia em ser mademoiselle Cunegundes; o terceiro, em vê-la todos os dias; e o quarto, em ouvir mestre Pangloss, o maior filósofo da província, e por conseguinte de toda a terra.
   Um dia, em que passeava nas proximidades do castelo, pelo pequeno bosque a que chamavam parque, Cunegundes viu entre as moitas o doutor Pangloss que estava dando uma lição de física experimental à camareira de sua mãe, moreninha muito bonita e dócil. Como a senhorita Cunegundes tivesse grande inclinação para as ciências, observou, sem respirar, as repetidas experiências de que foi testemunha; viu com toda a clareza a razão suficiente do doutor, os efeitos e as causas, e regressou toda agitada e pensativa, cheia do desejo de se tornar sábia, e pensando que bem poderia ela ser a razão suficiente do jovem Cândido, o qual também podia ser a sua.
   Encontrou Cândido ao voltar para o castelo, e enrubesceu; Cândido também corou; ela
cumprimentou-o com voz entrecortada, e Cândido falou-lhe sem saber o que dizia. No dia seguinte, depois do jantar, Cunegundes e Cândido encontraram-se atrás de um biombo; Cunegundes deixou cair o lenço, Cândido apanhou-o, ela tomou-lhe inocentemente a mão, o jovem beijou inocentemente a mão da moça com uma vivacidade, uma sensibilidade, uma graça toda especial; suas bocas encontraram-se, seus olhos fulguraram, seus joelhos tremeram, suas mãos perderam-se... Ora, o senhor barão de Thunder-ten-tronckh passou junto ao paravento e, vendo aquela causa e aquele efeito, correu Cândido do castelo, a pontapés no traseiro; Cunegundes desmaiou; logo que voltou a si, foi esbofeteada pela senhora
baronesa; e houve a maior consternação no mais lindo e mais agradável dos castelos possíveis.

CAPÍTULO II
Do que sucedeu a Cândido entre os búlgaros

Cândido, expulso do paraíso terrestre, caminhou muito tempo sem saber por onde andava, chorando, erguendo os olhos ao céu, voltando-os seguidamente para o mais lindo dos castelos que encerrava a mais linda das baronesinhas. Deitou-se, sem comer, em pleno campo, entre dois sulcos de lavoura, enquanto caia neve em grandes flocos. Cândido, transido, arrastou-se no dia seguinte até a aldeia próxima, que se chama Valberghoff-trarbk-dikdorff, sem dinheiro, morto de fome e de cansaço. Parou tristemente à porta de uma estalagem. Dois homens trajados de azul deram com os olhos nele: 
- Camarada - disse um, - eis ali um rapaz de bom corpo e que tem a altura requerida.
   Dirigiram-se a Cândido e convidaram-no polidamente para almoçar.
- Senhores - lhes disse Cândido com encantadora modéstia, - concedem-me uma grande honra, mas na verdade não tenho com que pagar a minha parte.
- Ah! senhor - retrucou um dos de azul, - as pessoas do seu porte e do seu merecimento nunca pagam nada: pois o amigo não tem cinco pés e cinco polegadas!
- Sim, é essa a minha altura - disse ele, fazendo uma reverência.
- Ah! senhor, sente-se à mesa; não só lhe pagaremos tudo, mas jamais, consentiremos que um homem como o senhor ande sem dinheiro; os homens foram feitos apenas para auxiliarem uns aos outros.
- Os senhores têm toda razão - concordou Cândido.
- Foi o que sempre me disse o senhor Pangloss, e bem vejo que tudo está o melhor possível.
   Pedem-lhe que aceite alguns escudos; ele os embolsa e quer passar recibo; não lho consentem, e sentam-se os três à mesa:
- O senhor não ama ternamente?...
- Oh! sim - respondeu ele, - amo ternamente a senhorita Cunegundes.
- Não - diz um deles, - nós perguntamos se não ama ternamente ao rei dos búlgaros.
- Absolutamente - retruca ele, - pois nunca o vi.
- Como! É o mais encantador dos reis, e devemos erguer-lhe um brinde.
- Oh! com muito gosto, senhores.
   E Cândido bebe à saúde do rei.
- Isso basta - dizem-lhe. - O senhor agora é o apoio, o sustentáculo, o defensor, o herói dos búlgaros; sua fortuna está feita e sua glória assegurada.
   Em seguida aplicam-lhe cadeias aos pés e o levam para o regimento. Fazem-lhe volver à direita , à esquerda, tirar a vareta, botar a vareta, - deitar por terra, atirar, correr, e dão-lhe trinta bastonadas; no dia seguinte, faz o exercício um pouco menos mal e só recebe vinte bastonadas; no outro dia só recebe dez, e é olhado pelos camaradas como um verdadeiro prodígio.
   Cândido, estupefato, ainda não atinava muito bem como poderia ser um herói. Por um belo dia de primavera, lembrou-se de dar um passeio e seguiu direito em frente, na crença de que era um privilégio da espécie humana, como da espécie animal, servir-se das próprias pernas como bem lhe aprouvesse.
   Ainda não andara duas léguas, quando quatro outros heróis de seis pés o alcançam, amarram-no bem amarrado, e o metem num calabouço. Perguntaram-lhe juridicamente se preferia ser fustigado trinta e seis vezes por todo o regimento ou receber, em uma só descarga, trinta e seis balas de chumbo na cabeça.
   Por mais que Cândido alegasse que a vontade humana é livre, teve de fazer a escolha; resolveu, então, em virtude desse dom de Deus a que chamam liberdade, ser passado trinta e seis vezes pela vara. Agüentou dois turnos. O regimento compunha-se de dois mil homens; isso lhe valera, até então, quatro mil varadas que, da nuca ao traseiro, lhe puseram a descoberto todos os músculos e nervos. Quando iam dar início ao terceiro, Cândido, não podendo mais, pediu por misericórdia que tivessem a bondade de lhe arrebentar os miolos.      Concedem-lhe esse favor; vendam-lhe os olhos e fazem-no ajoelhar-se. Nesse momento passa o rei dos búlgaros, informa-se do crime do paciente; e, como esse rei tinha um grande gênio, compreendeu, por tudo quanto soube de Cândido, que se tratava de um jovem metafísico, muito ignorante das coisas deste mundo, e concedeu-lhe a sua graça com uma demência que
será louvada em todos os jornais e em todos os séculos. Um bravo cirurgião curou Cândido em três semanas, com emolientes recomendados por Dioscórides. Tinha já um pouco de pele e podia amar, quando o rei dos búlgaros travou batalha com o rei dos abaros.

CAPÍTULO III
De como Cândido escapou aos búlgaros, e do que lhe sucedeu depois.

   Nada tão belo, tão lesto, tão brilhante, tão bem ordenado como aqueles dois exércitos. As trombetas, os pífanos, os oboés, os tambores, os canhões, formavam uma harmonia como jamais a houve no inferno.
   Primeiro os canhões derrubaram cerca de seis mil homens de cada lado; em seguida a mosquetaria varreu do melhor dos mundos uns nove a dez mil marotos que lhe infetavam a superfície. A baioneta foi também a razão suficiente da morte de alguns milhares de homens. O que tudo montava a umas trinta mil almas. Cândido, que tremia como um filósofo, ocultou-se o melhor que pôde durante aquela heróica mortandade.
   Enfim, enquanto os dois reis mandavam cantar Te Deuns cada qual no seu campo tomou ele o partido de ir raciocinar alhures sobre os efeitos e as causas. Passou por cima de montões de mortos e moribundos, e alcançou primeiro uma aldeia vizinha; estava reduzida a cinzas: era uma aldeia abara que os búlgaros haviam queimado, conforme as leis do direito público. Aqui, velhos crivados de golpes viam agonizar suas mulheres degoladas de cujo ensangüentado seio pendiam crianças; além, soltavam os último suspiros raparigas destripadas: depois de haverem saciado os desejos naturais de alguns heróis; outras, meio queimadas, gritavam que lhes acabassem de vez com a vida. Miolos se espalhavam sobre a terra, ao lado de pernas e braços amputados.
   Cândido fugiu o mais depressa possível para outra aldeia: pertencia aos búlgaros, e os heróis abaros a tinham tratado da mesma forma. Cândido, sempre a andar por sobre membros palpitantes ou através de ruínas, deixou enfim o teatro da guerra, levando algumas provisões no alforje e sem nunca esquecer a senhorita Cunegundes. Acabaram-se-lhe as provisões ao chegar à Holanda; mas, tendo ouvido dizer que nesse país todos eram ricos e verdadeiramente cristãos, não duvidou que o tratassem tão bem como no castelo do senhor barão, antes de ser dali escorraçado por amor dos lindos olhos da senhorita Cunegundes.
   Pediu esmola a vários personagens de ar grave e todos lhe responderam que, se continuasse a exercer tal ofício, o mandariam encerrar numa casa de correção, para ensinar-lhe a viver direito. Dirigiu-se depois a um homem que acabava de falar sozinho uma hora inteira sobre a caridade, perante uma grande assembléia. Esse homem, olhando-o de soslaio, indagou:
- Que vieste fazer aqui? - És pela boa causa?
- Não há efeito sem causa - respondeu modestamente Cândido, - tudo está perfeitamente encadeado e arranjado o melhor possível Foi preciso que eu tivesse sido expulso de junto da senhorita Cunegundes e passado pelas varas, e é preciso que eu esmole o meu pão antes que possa ganhá-lo; nada disso poderia ser de outro modo.
- Meu amigo - perguntou o orador, - acreditas que o Papa seja o Anticristo?
- Ainda não o ouvira dizer - respondeu Cândido. - Mas, que o seja ou não seja, o fato é que eu não tenho pão.
- Nem mereces comê-lo - retrucou o outro. - Anda, biltre, miserável! Desaparece das minhas vistas!
   A mulher do orador, chegando à janela e vendo um homem que duvidava que o Papa fosse o
Anticristo, despejou-lhe na cabeça todo o conteúdo de um... Ó céus! a que excessos não levam as damas o seu zelo religioso!
   Um homem que ainda não fora batizado, um bom anabatista, chamado Jaques, viu de que maneira cruel e ignominiosa era tratado um de seus irmãos, um bípede implume, que possuía uma alma; levou-o para casa, limpou-o, deu-lhe pão e cerveja, presenteou-o com dois florins, e até quis ensinar-lhe a trabalhar na sua manufatura de tecidos da Pérsia fabricados na Holanda. Cândido, quase a prosternar-se diante dele, exclamava: "Bem me dizia Mestre Pangloss que tudo está o melhor possível neste mundo, pois sinto-me infinitamente mais tocado com a sua extrema generosidade do que com a dureza daquele senhor de negro e da senhora sua esposa?
   No dia seguinte, ao passear, encontrou um mendigo coberto de pústulas, os olhos mortiços, a ponta do nariz carcomida, a boca de viés, os dentes negros, falando pela garganta sacudido de acessos de tosse e cuspindo um dente a cada esforço.

CAPÍTULO IV
De como Cândido encontrou o seu antigo mestre de filosofia, o doutor Pangloss, e do
que sucedeu

   Cândido, mais tocado ainda de compaixão que de horror, deu àquele espantoso mendigo os dois florins que recebera do bom anabatista. O fantasma olha-o fixamente, derrama lágrimas, e salta-lhe ao pescoço. Cândido, horrorizado, recua.
- Ai! - diz o miserável ao outro miserável, - então não reconheces mais o teu caro Pangloss?
- Que ouço? Tu, o meu querido mestre! Tu, nesse horrendo estado! Que desgraça te aconteceu? Por que não estás ainda no mais lindo dos castelos? Que foi feito da senhorita Cunegundes, a pérola das donzelas, a obra-prima da natureza?
- Não posso mais comigo - gemeu Pangloss.
Cândido o levou para o estábulo do anabatista, onde lhe deu a comer um pouco de pão. E, depois que Pangloss se refez:
- Então - disse ele, - e Cunegundes?
- Morreu.
   A esta palavra, Cândido perdeu os sentidos; o amigo o fez voltar a si com um pouco de mau vinagre que havia por acaso no estábulo. Cândido reabre os olhos:
- Cunegundes morta! Oh! onde é que estás, ó melhor dos mundos? Mas de que morreu? Não seria por me ter visto expulsar a pontapés do castelo do senhor seu pai?
- Não - disse Pangloss. - Ela foi estripada por soldados búlgaros, depois de ter sido violada o mais possível; rebentaram a cabeça do senhor barão, que queria defendê-la; a senhora baronesa foi cortada em pedaços; o meu pobre pupilo, tratado precisamente como a irmã e quanto ao castelo, não ficou pedra sobre pedra, nem uma granja, nem um carneiro, nem um pato, nem uma árvore; mas fomos bem vingados, pois os abaros fizeram o mesmo em uma baronia vizinha que pertencia a um senhor búlgaro.
   Ao ouvir tais coisas, Cândido desmaiou outra vez; mas, voltando a si, e tendo dito tudo o que devia dizer, Indagou da causa e do efeito, e da razão suficiente que pusera Pangloss em tão lastimável estado.
- Ai! - suspirou o outro. - Foi o amor; -, amor, o consolador do gênero humano, o conservador do universo, a alma de todos os seres sensíveis, o terno amor.
- Ai! - disse Cândido. - Eu o conheci, esse amor, esse soberano dos corações, essa alma da nossa alma: nunca me rendeu mais que um beijo e vinte pontapés por detrás. Como pôde essa bela causa produzir, na tua pessoa, tão abominável efeito?
   Pangloss respondeu nos seguintes termos:
- Ó meu caro Cândido! Bem conheceste Paquette, a linda criadinha da nossa augusta baronesa; gozei nos seus braços as delícias do paraíso, que produziram em mim estes tormentos do inferno de que me vês devorado; ela estava infetada e talvez tenha morrido disso. Paquette ganhara esse presente de um franciscano muito erudito, que havia remontado à fonte, pois o adquirira de uma velha condessa, que o recebera de um capitão de cavalaria, que o devia a uma marquesa, que a tinha de um pajem, que o tomara de um jesuíta que, quando noviço, o herdara em linha reta de um dos companheiros de Cristóvão Colombo. Quanto a mim, não o passarei a ninguém, pois estou para morrer. Ó Pangloss! - exclamou
Cândido. - Que, estranha genealogia! Não seria o diabo que foi o tronco?
- Qual! - replicou o grande homem. - Era uma coisa indispensável no melhor dos mundos, um
ingrediente necessário: pois, se Colombo não tivesse apanhado em uma ilha da América essa doença que envenena a fonte da geração, e que é evidentemente o oposto da grande finalidade da natureza, nós não teríamos nem chocolate nem cochonilha; cumpre observar que até hoje, no nosso continente, esta doença nos é peculiar, como a controvérsia, os turcos, os hindus, os pernas, os chins, os siameses, os nipônicos, ainda não a conhecem; mas há uma razão suficiente para que a conheçam, por sua vez, em alguns séculos. Enquanto isto, vai ela fazendo um maravilhoso progresso entre nós, e principalmente nesses grandes exércitos compostos de honrados mercenários, tão bem educados, que decidem do destino das
nações; pode-se assegurar que, quando trinta mil homens combatem em formação contra tropas iguais em número, há cerca de vinte mil contaminados em cada campo.
- Admirável disse Cândido, mas é preciso que te cures.
- Mas como? Não tenho um vintém, meu amigo; e, em toda a extensão deste globo, não me pode nem fazer uma sangria, nem tomar uma lavagem, sem pagar, ou sem que haja alguém que pague por nós.
   Estas últimas palavras decidiram Cândido; foi lançar-se aos pés do caridoso anabatista Jaques e fez-lhe uma pintura tão comovente do estado a que se achava reduzido o seu amigo, que o nosso homem não hesitou em recolher o doutor Pangloss; mandou-o tratar à sua custa. Pangloss, com a cura, só perdeu um olho e uma orelha. Como tinha boa letra e sabia aritmética, o anabatista empregou-o como guarda-livros. Dois meses depois, sendo obrigado a ir a Lisboa a negócios, embarcou consigo os dois filósofos. Pangloss explicou-lhe como tudo marchava o melhor possível. Jaques não era dessa opinião.
- Está visto - dizia ele - que os homens corromperam um pouco a natureza, pois não nasceram lobos, e tornaram-se lobos. Deus não lhes deu nem canhões nem baionetas, e eles fabricaram baionetas e canhões para se aniquilarem. Eu poderia ainda levar em conta as falências, e a justiça, que se apodera dos bens dos falidos para ludibriar os credores.
- Tudo isso era indispensável - replicava o doutor caolho, - e os males particulares constituem o bem geral, de sorte que, quanto mais males particulares houver, tanto melhor irão as coisas.
Enquanto assim arrazoava, o céu escureceu, os ventos sopraram dos quatro cantos do mundo, e o navio foi assaltado pela mais tremenda tempestade, à vista do porto de Lisboa.

CAPÍTULO V
Da tempestade, naufrágio, terremoto, e do que sucedeu ao doutor Pangloss, a Cândido e ao anabatista Jaques.

- Metade dos passageiros, enfraquecidos, agoniados com a inconcebível indisposição em que a instabilidade de um navio deixa a todos os nervos e humores do corpo, agitados em sentidos contrários, não tinham nem mesmo forças para inquietar-se com o perigo. A outra metade soltava gritos e rezava; as velas estavam rotas, os mastros quebrados, o navio fendido. Trabalhava quem pudesse, ninguém se entendia, ninguém comandava, o anabatista auxiliava um pouco a manobra; achava-se no convés; um marinheiro furioso bate-lhe rudemente e derruba-o sobre as pranchas, mas, com o golpe que lhe deu, caiu ele próprio para fora do navio, ficando suspenso a um toco de mastro. O bom Jaques corre em seu auxílio, ajuda-o a subir e, com o esforço que faz, é precipitado no mar, sem que o marinheiro fizesse o mínimo gesto para salvá-lo. Cândido aproxima-se, vê o seu benfeitor que reaparece um momento à tona e é tragado para sempre. Quer lançar-se ao mar, mas Pangloss lho impede, provando-lhe que a enseada de Lisboa fora feita expressamente para afogar o anabatista. Enquanto o provava a priori, o navio parte-se ao meio e todos perecem, com exceção de Pangloss, de Cândido e do brutal marinheiro que afogara o virtuoso anabatista; o facínora nadou até a margem, onde Pangloss e Cândido arribaram, agarrados a uma tábua.
   Depois que se refizeram um pouco, encaminharam-se para Lisboa; restava-lhes algum dinheiro, com o qual esperavam salvar-se da fome, depois de haverem escapado à tempestade. Mal entravam na cidade, chorando a morte do benfeitor, quando sentem o solo tremer sob os seus pés; o mar, furioso, galga o porto e despedaça os navios que ali me acham ancorados. Turbilhões de chama e cinza cobrem as ruas e praças públicas; as casas desabam; abatem-se os tetos sobre os alicerces que se abalam; trinta mil habitantes são esmagados sob as ruínas. Assobiando e praguejando, dizia consigo o marinheiro: - Muito há que aproveitar aqui. - Qual poderá ser a razão suficiente deste fenômeno? - indagava Pangloss.
   Chegou o último dia do mundo! exclamava Cândido. O marinheiro corre imediatamente para o meio dos destroços, afronta a morte em busca de dinheiro, acha-o, embriaga-se; depois de cozinhar a bebedeira, compra os favores da primeira rapariga de boa vontade que encontra sobre as ruínas das casas e em meio dos mortos e moribundos. Enquanto isto, Pangloss puxava-o pela manga. - Meu amigo - dizia-lhe, - isto não está direito, ofendes a razão universal, empregas muito mal o teu tempo. - Com os diabos! - responde o outro, - sou marinheiro e nasci em Batávia; marchei quatro vezes sobre o crucifixo, em quatro viagens que fiz ao Japão; e ainda me vens com a razão universal!
   Alguns estilhaços de pedra haviam ferido Cândido, que se achava estendido no meio da rua e coberto de destroços.
- Ai! - dizia ele a Pangloss, consegue-me um pouco de vinho e de óleo, que estou morrendo.
- Este terremoto não é novidade nenhuma - respondeu Pangloss. - A cidade de Lima experimentou os mesmos tremores de terra no ano passado; iguais causas, iguais efeitos: há com certeza uma corrente subterrânea de enxofre, desde Lima até Lisboa.
- Nada mais provável - respondeu Cândido, - mas, por amor de Deus, arranja-me óleo e vinho.
- Como, provável? - replicou. - Sustento que é a coisa mais demonstrada que existe.
Cândido perdeu os sentidos, e Pangloss trouxe-lhe um pouco de água de uma fonte vizinha.
No dia seguinte, havendo encontrado alguma provisão de boca em meio aos escombros, repararam um pouco as forças. Em seguida puseram-se a trabalhar como os outros para auxiliar os habitantes escapados à morte. Alguns cidadãos por eles socorridos deram-lhes o melhor almoço que poderiam encontrar em tais circunstâncias. Verdade que a refeição era triste; os convivas regavam o pão com lágrimas. Mas Pangloss consolou-os, assegurando-lhes que as coisas não poderiam ser de outra maneira: "Pois tudo isto - dizia ele - é o que há de melhor. Pois, se há um vulcão em Lisboa, não poderia estar noutra parte. Pois é impossível que as coisas não estejam onde estão. Pois tudo está bem". 
   Um homenzinho de preto, familiar da Inquisição, que se achava a seu lado, tomou polidamente a palavra e disse:
- Pelo visto, o senhor não crê no pecado original; pois, se tudo está o melhor possível, não houve nem queda, nem castigo.
- Peço humildemente perdão a Vossa Excelência - disse Pangloss ainda mais polidamente, - pois a queda do homem e a maldição entravam necessariamente no melhor dos mundos possíveis.
- O senhor não crê então na liberdade? - perguntou o familiar.
- Vossa Excelência me desculpará - disse Pangloss; - a liberdade pode subsistir com a necessidade absoluta; pois era necessário que fôssemos livres, porque enfim a liberdade determinada...
   Pangloss estava no meio da frase, quando o familiar fez um sinal de cabeça para o seu lacaio, que lhe servia vinho do Porto.








2 - A DIVINA COMÉDIA
Divina Commedia







A DIVINA COMÉDIA, ESCRITA ENTRE OS ANOS 1307 E 1320 (DATA APROXIMADA), É UM BELO LEGADO À HUMANIDADE DEIXADO PELO POETA ITALIANO DANTE ALIGHIERI (1265-1321). ESTAS LINHAS QUE SEGUEM PERTENCEM AO SITE http://www.stelle.com.br/ . COMO SE PODE VER, ESTA É UMA ADAPTAÇÃO EM PROSA DA OBRA QUE, ORIGINALMENTE, FOI ESCRITA EM VERSOS. A OBRA É DIVIDIDA EM TRÊS PARTES: INFERNO, PURGATÓRIO E PARAÍSO. LEIAM E APROVEITEM ESSA MARAVILHA LITERÁRIA!


JOSÉ LUÍS QUEIMADO!






INFERNO



Canto I

A selva escura - As feras - O espírito de Virgílio

         Quando eu me encontrava na metade do caminho de nossa vida, me vi perdido em uma selva escura, e a minha vida não mais seguia o caminho certo. Ah, como é difícil descrevê-la! Aquela selva era tão selvagem, cruel, amarga, que a sua simples lembrança me traz de volta o medo. Creio que nem mesmo a morte poderia ser tão terrível. Mas, para que eu possa falar do bem que dali resultou, terei antes que falar de outras coisas, que do bem, passam longe.
Eu não sei como fui parar naquele lugar sombrio. Sonolento como eu estava, devo ter cochilado e por isso me afastei da via verdadeira. Mas, ao chegar ao pé de um monte onde começava a selva que se estendia vale abaixo, olhei para cima e vi aquela ladeira coberta com os primeiros raios do sol. A cena trouxe luz à minha vida, afastou de vez o medo e me deu novas esperanças. Decidi então subir aquele monte. Olhei para trás uma última vez, para aquela selva que nunca deixara uma alma viva escapar, descansei um pouco, e depois, iniciei a escalada.
Eu havia dado poucos passos, quando, de repente, saltou à minha frente um ágil e alegre leopardo. Astuto, de pêlos manchados, de todas as formas ele impedia que eu seguisse adiante. Não adiantava desviar ou buscar um outro caminho pois no final, ele sempre estava lá, bloqueando a minha passagem. Várias vezes tentei vencê-lo. Várias vezes falhei.
O dia já raiava e o sol nascia com aquelas mesmas estrelas que acompanharam o mundo no seu primeiro dia. A luz e a claridade daquele dia especial renovaram minhas esperanças, e me fizeram acreditar que iria conseguir vencer aquela fera malhada.
Mas a minha esperança durou pouco e o medo retornou quando vi surgir, diante de mim, um leão. Ele parecia avançar na minha direção, com a cabeça erguida, tão faminto e raivoso que até o próprio ar parecia temê-lo. E depois veio uma loba, magra e cobiçosa, cuja visão tornou minha alma tão pesada, pelo medo que me possuiu, que não vi mais esperança alguma na escalada. A loba avançava, lentamente, e me fazia descer, me empurrando de volta para aquele lugar onde a luz do Sol não entra.
Quando eu já me encontrava na beira daquele vale escuro, meus olhos aos poucos perceberam um vulto que se aproximava, que apagado estivera, talvez por excessivo silêncio.
- Tenha piedade de mim - gritei ao vê-lo - quem quer que sejas, sombra ou homem vivo!
- Homem não mais - respondeu o vulto -, homem eu fui um dia. Nasci em Mântua, nos tempos de Júlio César e vivi em Roma no império de Augusto. Fui poeta e narrei a odisséia de Enéas, que fugiu de Tróia depois do incêndio. E tu, por que não sobes o precioso monte, princípio e causa de toda glória?
- Tu és Virgílio? - perguntei, vergonhoso - Ora, tu és meu mestre e meu autor predileto! Foi contigo que aprendi o belo estilo poético que me deu louvor. Eu não subi o monte por causa dessa fera. Ela me faz tremer os pulsos. Ajuda-me, sábio famoso! Ajuda-me a enfrentá-la!
- A ti convém seguir outra viagem - respondeu o poeta, ao me ver lacrimejando - pois essa fera, essa loba, é a mais feroz e insaciável de todas. Ela só partirá quando finalmente vier o Lebreiro que para ela será a dura morte. Ele não se alimentará nem de dinheiro, nem de terras; só a sua sabedoria, amor e virtude poderão nutri-lo. Ele virá para salvar a tua Itália caída. Ele irá caçar essa fera em todas as cidades até encontrá-la, quando então a matará e a conduzirá de volta ao inferno, de onde a Inveja, primeiro a trouxe para este mundo.
Depois, me fez uma proposta:
- Eu acho melhor, para teu bem, que me sigas. Eu serei o teu guia. Te levarei para um lugar eterno onde verás condenados gritando, em vão, por uma segunda chance. Depois verás outros que sofrem contentes no fogo, pois têm esperança de um dia seguir ao encontro daquela gente abençoada. E depois, se quiseres subir ao céu, lá terás alma mais digna do que eu, pois o imperador daquele reino me nega a entrada, pois à sua lei eu fui rebelde.
- Poeta - respondi -, eu te imploro, em nome desse Deus que não conheceste, que me ajudes a fugir deste mal ou de outro pior. Eu te seguirei a esses lugares que descreveste. Que eu possa ver a porta de São Pedro e os tristes sofredores dos quais falaste!
Ele então moveu-se, e eu o acompanhei.

Canto II

Razão da viagem - Beatriz

            Já anoitecia quando iniciamos a jornada. Ó Musas, ó grande gênio, me ajudem para que eu possa relatar aqui sem erro esta viagem que está escrita para sempre em minha mente! E então comecei:
- Ó poeta que me guias, julga minha virtude e dize se é compatível com o caminho árduo que me confias. Não sou ninguém diante de Paulo ou Enéas. Não consigo crer que eu seja digno de tal, nem acho que outro pensaria da mesma forma.
- Se eu de fato compreendi o que acabas de dizer - respondeu o poeta -, tua alma está tomada pela covardia, que tantas vezes pesa sobre os homens, os afastando de nobres empreendimentos, como uma besta assustada pela própria sombra. Para te libertar desse medo, deixa que eu te explique como cheguei até ti:
"Eu estava com os outros espíritos suspensos no Limbo quando apareceu-me uma mulher beata e bela.
- Ó generosa alma mantuana, - disse ela -, ajude-me a socorrer um amigo, que está perdido na selva escura. Vai com tua fala ornada e ajuda-o para que eu seja consolada. Eu sou Beatriz, que pede que tu vás. Venho do céu e para o céu voltarei. Foi o amor que me trouxe e é ele quem me faz falar.
- Ó mulher de virtude, tanto me agrada obedecer-te, que basta dizeres o que desejas que eu faça que eu o farei. Mas dize-me, não tens medo de descer até este centro escuro?
- Deve-se temer as coisas que de fato têm o poder de nos causar mal - respondeu -, e mais nada, pois nada mais existe para temer. A mulher gentil que se compadeceu do que acontece com aquele a quem te envio, pediu a Luzia, dizendo: 'aquele teu adepto fiel precisa de tua ajuda e a ti o recomendo.' Luzia, inimiga de toda crueldade, veio então a procurar-me, onde eu sentava com a antiga Raquel. 'Beatriz', disse, 'não vais salvar quem mais te amou e que por ti se elevou do povo vulgar?' Logo que ouvi tais palavras desci aqui, do meu beato posto, por confiar na tua palavra honesta.
E assim, ela me deixou, e eu cheguei para afastar aquela fera que impedia que tu escalasses o belo monte."
- Então o que é que há? Por que tu és tão covarde? Por que não és bravo e corajoso, quando tens três mulheres abençoadas que te guardam lá do céu?
Depois que ele terminou de falar, eu não era mais o mesmo. Recuperei a coragem, perdi o medo e afastei todas as minhas dúvidas. Imediatamente voltei a confiar na jornada que me fora proposta e disse-lhe:
- Ó piedosa aquela que me socorreu, e tu que tão cortês atendeste ao seu pedido. Com tuas palavras tornei-me outra vez disposto. Vamos, que agora ambos queremos a mesma coisa. Tu serás meu guia, e eu te seguirei.
E assim, seguimos por um caminho árduo e silvestre.

Canto III

A porta do Inferno - Vestíbulo
Rio Aqueronte - Caronte

POR MIM SE VAI À CIDADE DOLENTE, 

POR MIM SE VAI À ETERNA DOR ,
POR MIM SE VAI À PERDIDA GENTE.


JUSTIÇA MOVEU O MEU ALTO CRIADOR, 

QUE ME FEZ COM O DIVINO PODER,
O SABER SUPREMO E O PRIMEIRO AMOR.


ANTES DE MIM COISA ALGUMA FOI CRIADA 

EXCETO COISAS ETERNAS, E ETERNA EU DURO. 
DEIXAI TODA ESPERANÇA, VÓS QUE ENTRAIS!
Estas palavras estavam escritas em tom escuro, no alto de um portal. Eu, assustado, confidenciei ao meu guia:
- Mestre, estas palavras são muito duras.
- Não tenhas medo - respondeu Virgílio, experiente - mas não sejas fraco! Aqui chegamos ao lugar, do qual antes te falei, onde encontraríamos as almas sofredoras que já perderam seu livre poder de arbítrio. Não temas, pois tu não és uma delas, tu ainda vives.
Em seguida, Virgílio segurou minha mão, sorriu para me dar confiança, e me guiou na direção daquele sinistro portal.
Logo que entrei ouvi gritos terríveis, suspiros e prantos que ecoavam pela escuridão sem estrelas. Os lamentos eram tão intensos que não me contive e chorei. Gritos de mágoa, brigas, queixas iradas em diversas línguas formavam um tumulto que tinha o som de uma ventania. Eu, com a cabeça já tomada de horror, perguntei:
- Mestre, quem são essas pessoas que sofrem tanto?
- Este é o destino daquelas almas que não procuraram fazer o bem divino, mas também não buscaram fazer o mal. - me respondeu o mestre. - Se misturam com aquele coro de anjos que não foram nem fiéis nem infiéis ao seu Deus. Tanto o céu quanto o inferno os rejeita.
- Mestre - continuei -, a que pena tão terrível estão esses coitados submetidos para que lamentem tanto?
- Te direi em poucas palavras. Estes espíritos não têm esperança de morte nem de salvação. O mundo não se lembrará deles, a misericórdia e a justiça os ignoram. Deixe-os. Só olha, e passa.
E então olhei e vi que as almas formavam uma grande multidão, correndo atrás de uma bandeira que nunca parava. Estavam todas nuas, expostas a picadas de enxames de vespas que as feriam em todo o corpo. O sangue escorria, junto com as lágrimas até os pés, onde vermes doentes ainda os roíam.
Quando olhei além dessa turba, vi uma outra grande multidão que esperava às margens de um grande rio.
- Quem são aqueles? - perguntei ao mestre.
- Tu saberás no seu devido tempo, quando tivermos chegado à orla triste do Aqueronte. - respondeu, secamente.
Temendo ter feito perguntas demais, fiquei calado até chegarmos às margens daquele rio de águas pantanosas e cinzentas.
Chegava um barco dirigido por um velho pálido, branco e de pêlos antigos. Ele gritava:
- Almas ruins, vim vos buscar para o castigo eterno! Abandonai toda a esperança de ver o céu outra vez, pois vou levar-vos às trevas eternas, ao fogo e ao gelo!
Quando ele me viu, gritou:
- E tu, alma vivente, te afasta desse meio pois aqui só vem morto! - Vendo que eu não me mexia, mais calmo, falou - Tu deves seguir para outro porto, onde um outro barco, maior, te dará transporte.
- Caronte, te irritas em vão! - intercedeu o mestre - Lá, onde se pode o que se quer, isto se quer, e não peças mais nada!
Caronte então se calou, mas pude ver que seus olhos vermelhos ainda ardiam de raiva. As almas, chorando amargamente, se amontoavam na orla e Caronte as embarcava, uma a uma, batendo nelas com o remo quando alguma hesitava. Depois seguiam, quebrando as ondas sujas rio Aqueronte, e antes de chegarem à outra margem, uma nova multidão já se formava deste lado.
Enquanto Virgílio me falava sobre as almas que atravessavam o rio, houve um grande terremoto, seguido por uma ventania que inundou o céu com um clarão avermelhado. O susto foi tão intenso que eu desmaiei e caí num sono profundo.

Canto IV

Limbo (Círculo 1) - Castelo dos iluminados

          Acordei ao som de um trovão, já nas bordas abissais do fosso infernal, onde ecoam gritos infinitos. Tão escuro e nebuloso era que, por mais que eu tentasse forçar a vista ao fundo, não conseguia discernir coisa alguma.
- Desçamos ao mundo onde nada se vê. - disse Virgílio - Eu irei na frente e tu me seguirás. - e fez uma indicação para que eu o seguisse. Ele estava com uma aparência muito pálida, e por isso me assustei, hesitando por um instante.
- Como queres que eu te siga tranqüilo, se estás com medo? - perguntei.
- Não é medo. - respondeu - A piedade me clareia o rosto, por causa da angustia das gentes desamparadas que aqui sofrem. Andemos, pois temos ainda um longo caminho pela frente.
E assim ele me guiou para o primeiro círculo que rodeia o poço abissal. Naquele lugar não ouvi sons de lamentação, somente suspiros. Só havia mágoa. Como não lhe perguntei nada, o poeta resolveu me explicar que espíritos eram aqueles que eu estava vendo.
- Estes coitados não pecaram, mas não podem ir para o céu - explicou -, pois não foram batizados. Estão aqui as crianças não batizadas e aqueles que viveram antes de Cristo, como eu. Aqui não temos sofrimento, mas também não temos nenhuma esperança.
Senti pena dele enquanto falava e imaginei quanta gente de valor deveria estar suspensa para sempre nesse limbo, e então perguntei-lhe:
- Algum desses habitantes, por mérito seu ou com a ajuda de outro, pôde algum dia ir para o céu?
- Eu era novato neste lugar - respondeu Virgílio -, quando um Rei poderoso aqui desceu. Ele usava o sinal da vitória na sua coroa. Veio, e nos levou Adão, Noé, Moisés, Abraão, David, Israel, Raquel e vários outros que ele escolheu. E deves saber, antes que essas almas fossem levadas, nenhuma outra alma humana havia alcançado a salvação.
Não paramos de caminhar enquanto ele falava, mas continuamos pela selva, digo, a selva de espíritos. Não tínhamos nos afastado muito do ponto onde eu acordei, quando vi um fogo adiante, um hemisfério de luz que iluminava as trevas. Mesmo de longe, pude perceber, que aquele lugar era habitado por gente honrosa.
- Ó mestre que honras a ciência e a arte, quem são esses, privilegiados, que vivem separados dos outros aqui? - perguntei.
- O nome honrado que ainda ressoa no teu mundo lá em cima, encontra a graça no céu que o favorece aqui.
Mal ele terminara de falar, ouvi um chamado que partiu de um dos vultos iluminados:
- Saudemos o altíssimo poeta. - gritou a alma - Sua sombra que havia partido já está de volta!
Depois que a voz se calou, vi quatro grandes vultos se aproximarem. Os seus rostos não mostravam tristeza, mas também não mostravam alegria. Virgílio os apresentou:
- Este é Homero, poeta soberano, o outro é Horácio, o satírico, Ovídio é o terceiro e por último, Lucano.
Quando chegamos até eles, o mestre falou-lhes em particular e depois eles me saudaram, tratando-me com deferência, incluindo-me como o sexto do seu grupo.
Prosseguimos, então, os seis, até finalmente chegarmos ao local de onde emanava a luz. Lá se erguia um nobre castelo de muros altos, cercado por um belo riacho. Sete muros o cercavam. Nós passamos sobre o riacho como se fosse terra dura, depois, sete portões atravessamos até chegarmos a um verde prado, onde muitas outras pessoas conversavam. De lá mudamos para um local aberto, luminoso e alto, onde podíamos ter uma visão completa de todos. Reconheci várias grandes figuras como Enéas, Heitor e César, Aristóteles, Sócrates e Platão, Orfeu, Heráclito, Tales, Zenão, Ptolomeu e muitos outros. Exaltou-me a possibilidade de poder encontrar todos esses espíritos, cuja sabedoria enchia de luz aquele lugar sombrio. Havia mais. Muitos. Tantos eram, que não posso aqui listar todos. 
De todos, no final, restamos só eu e Virgílio, pois nossa jornada nos impelia adiante. Chegamos, então, a um lugar onde nada mais reluzia.


Canto V
Minós - Círculo da luxúria (2). Espíritos de Paolo e Francesca




        Assim que entramos no segundo círculo, lá estava Minós, rangendo terrivelmente. Ele ficava na entrada e recepcionava os pecadores, julgando-os um por um. Ouvia suas confissões e proferia a sentença, se enrolando na própria cauda. O número de voltas que dava a sua cauda indicava quanto deveria descer o pecador para o seu lugar nas profundezas do inferno. Uma grande multidão se amontoava diante daquele juiz. Cada pecador falava, ouvia sua sentença, e era atirado no abismo.
- Ó tu que entras no asilo da dor - disse Minós ao me ver, interrompendo seu ofício -, vê bem em quem confias e como entras aqui. É fácil de entrar, mas não te enganes!
- Por que gritar? - respondeu Virgílio ao juiz dos mortos - Não podes impedir esta jornada, pois lá, onde tudo o que se quer se pode, isto se quer e não peças mais nada!
Minós se calou, e nós prosseguimos. Pouco a pouco comecei a perceber sons tristes, muito pranto e lamentos. Neste lugar escuro onde eu me encontrava, o som das vozes melancólicas se assemelhava ao assobio do mar durante uma grande tormenta. Os tristes sons emanavam de um enorme redemoinho. Eram almas sofredoras, sacudidas pelo vento que nunca cessava. Entendi que era o castigo pela transgressão da carne, que desafia a razão, e a submete à sua vontade.
No escuro vento vi várias sombras que passavam se lamentando e ao mestre perguntei:
- Mestre, quem são essas pessoas que o vento tanto castiga?
- A primeira, cuja história deves conhecer - explicou o mestre -, foi imperatriz de povos de muitas línguas. É Semíramis, a sucessora e esposa de Nino. A que a segue é a viúva de Siqueu, que se matou por amor. Ali tu vês Cleópatra, luxuriosa. Veja Helena, e também Aquiles, Páris, Tristão - e, uma por uma, me indicou outras mil sombras que tiveram suas vidas desfeitas pelo amor.
- Poeta - eu falei - eu gostaria, se for possível, de falar com aqueles dois, unidos, que tão leves parecem ser ao vento.
- Espera - respondeu -, em breve estarão próximos de nós, e quando a fúria do vento diminuir, peça, pelo amor que os conduz, que eles virão.
Então, quando a tormenta cedeu um pouco, eu chamei:
- Ó almas sofridas, falai conosco, se isto for permitido! Elas ouviram, entenderam meu pedido. Deixaram o bando onde estavam as outras e se aproximaram. Uma delas falou:
- Ó ser gracioso e benigno, o que desejares ouvir ou falar conosco, nós ouviremos e falaremos, se o vento permitir. Nasci na terra onde o Pó deságua. Amor, que ao coração gentil logo se prende, tomou este aqui, pela beleza da pessoa que de mim foi levada, e o modo ainda me ofende. Amor, que a nenhum amado amar perdoa, prendeu-me, pelo seu desejo com tanta força que, como vês, ele ainda não me abandona. Amor nos conduziu a uma só morte. Caína aguarda aquele que tirou as nossas vidas.
Ao ouvir esse lamento, baixei o rosto, e permaneci assim, até Virgílio me despertar. Voltei novamente àquele casal, e perguntei:
- Francesca, o teu martírio me traz lágrimas aos olhos, mas dize-me, como permitiu o amor que tomásseis conhecimento de vosso sentimento recíproco?
- Não há maior dor, que lembrar da felicidade passada - disse ela - mas se teu grande desejo é saber, te direi como quem chora e fala. Líamos um dia a sós, sobre o amor que seduziu Lancelote. Várias vezes essa leitura nos ergueu olhar a olhar. Mas foi quando chegamos àquele ponto que falava do sorriso que desejava ser beijado por um perfeito amante, que este aqui que nunca me seja apartado, tremendo, beijou-me na boca naquele instante. Nosso Galeoto foi aquele livro e quem o escreveu. Desde aquele dia, não o lemos mais adiante.
Enquanto uma alma contava a sua história triste, a outra chorava sem parar ao seu lado, e eu, comovido de piedade e dor, desmaiei, e caí como um corpo morto cai.


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MANUEL BANDEIRA

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Estou farto do lirismo comedido
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protocolo e manifestações de apreço ao Sr. Diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o
cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas

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Todas as construções sobretudo as sintaxes de excepção
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Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora
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Será contabilidade tabela de co-senos secretário
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Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbados
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare

- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.